A programação infantil na TV aberta parece um reino do faz de conta. Por trás da resistência da Cultura e do SBT, únicas emissoras a destinar horários diários para o gênero, está o interesse de marcas e licenciadores interessados numa vitrine para as crianças.
Em vez de comprar desenhos animados, os canais agora ganham temporadas de graça ou são remuneradas por empresas como Mattel, Viacom e Disney para exibi-los.
A nova prática é uma reação do mercado à proibição da publicidade infantil. Em 2014, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente tornou ilegal as campanhas direcionadas a crianças, por considerá-las abusivas. Só são permitidos anúncios voltados aos pais.
Desde então, sem o retorno financeiro da publicidade, os infantis sumiram dos canais abertos –a Globo encerrou seu último horário em 2015.
Se uma criança não conhece um personagem, dificilmente se interessará em pedir aos pais um brinquedo ou caderno com a imagem dele. E os ganhos vêm, justamente, do licenciamento.
Os canais infantis são campeões de audiência na TV paga –o líder Discovery Kids, tem 17,5 milhões de assinantes. Uma janela de exibição na TV aberta é sinônimo de penetração em todas as classes sociais, com um catálogo maior de produtos.
Há um ano, o SBT estreou o "Mundo Disney". O contrato de dois anos garante duas horas diárias (das 8h30 às 10h30) a atrações como "A Casa do Mickey". Às 7h, o canal exibe o "Carrossel Animado", que desde maio tem "Masha e O Urso", cedido gratuitamente.
Em 2015, o desenho russo fez uma escala na Cultura por um "valor simbólico", diz relatório da emissora, sem especificar cifras. O acordo integra as parcerias entre a TV pública paulista e as distribuidoras Viacom ("Dora, a Aventureira", "Bubble Guppies", "Patrulha Canina"), Rainbow ("Winx") e HIT/Mattel ("Thomas e seus Amigos", "Angelina" e "Barney"). A reportagem pediu os contratos via lei de acesso à informação. A Cultura negou, inclusive um recurso ao primeiro pedido, alegando que os documentos são confidenciais.
A Folha apurou que a HIT/Mattel pagou US$ 400 mil (cerca de R$ 1,2 milhão) por dois anos de exibição. Segundo um diretor do canal, o acordo com a Viacom foi "infinitamente menor".
Os US$ 400 mil que entraram seriam suficientes para um ano de "Viola, Minha Viola", diz outra fonte na diretoria. Em meio à crise financeira e com a morte de Inezita Barroso, o programa foi cancelado e a equipe, demitida.
"Nem sei dizer se o recurso é daqui ou dali no conjunto da operação", diz Marcos Mendonça, presidente da TV Cultura. Ele afirma que depende dessa verba para investir. "A parte que o Estado me dá não cobre a folha de pagamento."
Em 2015, o governo Alckmin repassou R$ 98,2 milhões ao canal, que gastou R$ 110 milhões com funcionários.
Mendonça afirma que os interesses das marcas em usar a exposição na TV para vender são "legítimos e naturais" e que a seleção segue os critérios educativos estabelecidos pelo estatuto da emissora. Diz ainda que o horário de exibição é definido pela Cultura.
Sob anonimato, um diretor do canal diz não ver propósito educativo em desenhos como "Winx" e que a escolha não foi debatida pela cúpula. Segundo esse diretor, houve escolha de horários: em troca da visibilidade (diariamente às 8h40 e 13h35), os distribuidores de "Peppa Pig" ofereceram à TV desconto nos episódios, que saíram por R$ 101,4 mil.
LEGISLAÇÃO
Por não terem acesso aos contratos, advogados não quiseram comentar se há ilegalidade em vender espaço. A lei veda a subconcessão (como fazem as igrejas evangélicas em canais abertos, prática que é alvo de inquérito do Ministério Público Federal).
É preciso avaliar quanto a emissora abre mão do controle do conteúdo exibido no horário para o contratante, diz o procurador da República Pedro Machado.
Protagonista no debate sobre publicidade infantil, a ONG Alana diz que as restrições da nova regulação não afetam licenciamento ou o conteúdo da programação – ou seja, que não haveria irregularidade. (Com informações da Folha de São Paulo).
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