“Acho que vamos parar por aqui, eu tenho família, queria criar ela em segurança e se ficar mexendo em coisas pesadas é pior… Já está na mão do juiz, então vamos deixar baixo”, desabafa um homem que foi vítima de escravidão moderna em propriedade rural do Mato Grosso do Sul. O Campo Grande News o procurou dias depois do resgate, já longe do Estado. Mesmo assim, prefere não dar entrevista, porque o tempo durante a exploração deixou marcas.
As respostas se repetem ao longo das tentativas de contar a história desses trabalhadores. “Não moça, melhor não, não quero prejudicar ninguém (...) já foi resolvido no Ministério do Trabalho”. Na terceira tentativa de contato, outro jovem encurtou a entrevista com “eu não gosto nem de falar sobre isso, não gosto de ficar lembrando disso porque dói muito quando eu lembro”.
Para tentar mudar a realidade dessas pessoas, muito permeada pelo medo, a Conaete (Coordenadoria de Combate ao Trabalho Escravo) do MPT (Ministério Público do Trabalho) busca parcerias nos municípios para acompanhar os resgatados e apresentar alternativas compensatórias que possam possibilitar um futuro profissional melhor.
Paulo Douglas de Almeida, hoje procurador do Trabalho e coordenador do Canaete, já foi juiz do Trabalho da 15ª Região e auditor fiscal. Sua caminhada de mais de 20 anos no combate ao trabalho escravo trouxe uma visão mais profunda do que é encontrado nas propriedades rurais, que explica o medo das vítimas de expor seus agressores, de repetir o que ocorreu ou nunca mais conseguir um emprego.
“O medo é compreensível, pois se trata de uma relação assimétrica, onde você tem alguém de poder econômico elevado e do outro lado pessoas humildes. É natural a percepção de que as pessoas que os escravizaram são poderosas. Esses riscos não existem, mas demonstram a sensação de inferioridade e desproteção. Nos remete ao eixo de pós-resgate, ao inserir esses trabalhadores na assistência social”, explica o procurador.
Mato Grosso do Sul já possui um padrão nesse tipo de crime, segundo Paulo. As vítimas são indígenas, paraguaias e bolivianos, além de gente muito pobre. As regiões com maior incidência são as fronteiriças.
Aliciadores costumam ir até esses pontos e recrutar as pessoas para a cadeia de produção, com condições degradantes. Entre os municípios com mais casos de escravidão moderna estão Bela Vista, Jardim, Bonito, Porto Murtinho, Antônio João e Corumbá.
“É importante o pós-resgate para você colocar essas pessoas na Assistência Social. Para conseguir fazer isso, tem que cuidar do aspecto imaterial, que é como a pessoa se vê, e o material, que é a qualificação deles e as melhores chances de sucesso deles. Por isso, estamos levando treinamento aos municípios para que o corpo de Assistência Social saiba identificar e como fazer a oitiva dessas pessoas”, complementa.
Com o objetivo de alcançar mais pessoas submetidas à escravidão moderna nas fazendas, o MPT já firmou parcerias com a Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul), OAB-MS (Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso do Sul) e Governo do Estado, além dos grandes produtores e beneficiários do setor agropecuário.
“Sendo bem realista, essa é uma chaga que está com a gente desde que o Brasil é Brasil. A escravidão contemporânea é uma variante da escravidão convencional, sem as pessoas acorrentadas e chicoteadas. Um problema histórico como esse... seria ingênuo da nossa parte imaginar que ia resolver em um curto espaço de tempo. Nossa tarefa é começar o processo de mudança para que no futuro, que não acredito ser próximo, tenhamos uma consciência adequada com relação ao caráter desumano e antieconômico dessas práticas”, concluiu Paulo Douglas.
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