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17/11/2025 às 11:06, Atualizado em 17/11/2025 às 15:27

Reflexão da Autora – Semana da Consciência Negra

Por - Adriana Paioli

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Divulgação

A noite caía sobre o quilombo do Engenho Velho como um manto espesso de dor e resistência. O vento trazia o som distante das correntes, misturado ao eco das preces que se elevavam entre o estalar dos chicotes e o pranto contido dos cativos.

Ali, no meio da escuridão, havia uma luz que insistia em não se apagar — a fé de uma família que, mesmo acorrentada, ainda sonhava com a liberdade.

Maria Firmina, a mãe, era o coração pulsante da senzala. Seus olhos, cansados, refletiam a força dos que sabem que o corpo pode ser preso, mas o espírito não. Ao lado dela, o marido João Bento, homem de voz grave e alma serena, alimentava o pequeno grupo com palavras de coragem:

— O dia vai chegar, minha gente. A liberdade pode tardar, mas ela vem, como vem a chuva pra molhar a terra seca.

Os filhos, Ana Rosa e Benedito, cresceram entre o trabalho pesado e os cânticos de esperança. Maria Firmina os ensinava a rezar baixinho, a cantar quando o cansaço pesava, a manter o olhar no céu.

— Deus não dorme, meus filhos — dizia. — E Ele há de ver o suor que corre do nosso rosto.

A cada madrugada, quando os senhores dormiam, o pai contava histórias do tempo em que o povo vivia livre nas terras da África. Falava dos rios largos, das danças ao redor do fogo, dos nomes que o vento havia levado, mas que o coração guardava.

Ana Rosa escutava com os olhos marejados, como se as lembranças do pai fossem o fio que ligava o presente àquilo que o mundo lhes havia tirado.

Um dia, Benedito foi levado para outra fazenda. Maria Firmina chorou calada. O choro dela não era de desespero, mas de um amor tão profundo que o próprio céu pareceu escurecer. Ainda assim, ela ergueu as mãos ao alto e disse:

— Se o vento o levou, o vento o trará de volta.

O tempo passou. As mãos calejaram, os corpos cansaram, mas a fé não se quebrou. A família se reunia nas noites de lua cheia para cantar os “pontos” aprendidos com os mais velhos. O som ecoava pelas matas e fazia os escravos de outras senzalas acreditarem que a liberdade era possível.

E então veio a guerra. Vieram as notícias de que homens negros lutavam nas fileiras pela abolição, pela promessa de um novo amanhecer. João Bento escapou numa madrugada de chuva, levando consigo a esperança de todos.

— Se eu não voltar, é porque virei vento — disse, antes de desaparecer entre as árvores.

Os meses seguintes foram longos e doloridos. Mas, certa manhã, um grupo de homens livres chegou ao engenho. Entre eles, coberto de cicatrizes e com o olhar firme, estava João Bento.

— A corrente caiu — disse, abraçando Maria Firmina. — O ferro se abriu, mas o que mais importa é que o espírito nunca foi domado.

A senzala virou casa. O tronco foi queimado, e no lugar dele plantaram uma mangueira. Sob sua sombra, a família se reunia para cantar. Ana Rosa agora ensinava outras crianças a ler as palavras que antes lhes eram negadas. Benedito, que havia fugido de outra fazenda, voltou — magro, mas com o mesmo brilho no olhar.

Nascia ali não apenas uma nova vida, mas uma nova história.

Os filhos dos filhos daquela família cresceriam ouvindo o mesmo canto que um dia rompeu o silêncio da dor.

E quando a noite chegava, Maria Firmina ainda olhava para o céu e dizia, com o coração leve:

— A liberdade é filha da fé.

E a fé... é o tambor que nunca para de tocar.

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