O Ministério Público de São Paulo considerou inconstitucional o decreto do último indulto de Natal do presidente Jair Bolsonaro (PL), que perdoa as penas e extingue as condenações dos policiais militares culpados na Justiça pelo caso conhecido como Massacre do Carandiru, e enviou uma representação ao Procurador-Geral da República (PGR), Antônio Augusto Aras.
O documento é assinada pelo Procurador-Geral de Justiça, Mário Luiz Sarrubbo.
"A concessão do indulto se incompatibiliza com esses dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos promulgada pelo Decreto n. 678, de 06 de novembro de 1992, razão pela qual requer a Vossa Excelência a tomada de providências urgentes em face dos preceitos impugnados por incompatibilidade com o art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, e as normas acima indicadas da Convenção Americana de Direitos Humanos, por ação direta de inconstitucionalidade ou arguição de descumprimento de preceito fundamental", afirma no ofício.
Em 2 de outubro de 1992, 111 presos foram mortos durante invasão da Polícia Militar (PM) para conter rebelião no Pavilhão 9 da Casa de Detenção em São Paulo.
Entenda como é o decreto do indulto de Natal de Bolsonaro
Segundo o decreto presidencial do indulto deste ano, estarão perdoados agentes de forças de seguranças que foram acusados por crimes cometidos há mais de 30 anos, mesmo que eles não tenham sido condenados em definitivo na última instância da Justiça.
Os PMs condenados pelo Massacre do Carandiru se encaixam nesse perfil. O caso completou três décadas em 2022.
Um procurador de Justiça, o promotor do caso e o representante de uma ONG de direitos humanos que disseram que esse indulto é inconstitucional por que esse tipo de decreto tem de ser coletivo e não direcionado a um grupo de um caso específico.
Os especialistas que criticaram a decisão presidencial disseram ainda que o decreto do indulto não pode ser aplicado automaticamente, dependendo de uma autorização judicial para ser validada.
Defesa dos PMs
Apesar disso, a defesa dos agentes da Polícia Militar (PM) que foram condenados informou que entrará nesta sexta com um pedido no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) para que o órgão encerre o processo criminal contra seus clientes por causa do indulto de Bolsonaro.
“Nós vamos interpor o pedido de trancamento da ação ainda hoje junto ao Tribunal de Justiça em razão do indulto. até por que a partir de agora eles passam a sofrer constrangimento ilegal com o trâmite da ação”, disse o advogado Eliezer Pereira Martins. “E na hipótese de o TJ não declarar extinta a ação, nós vamos pedir então que declaram a extinção da punibilidade no dia 31 de janeiro.”
O advogado havia dito em outras ocasiões que preferia se referir ao caso como "contenção do Carandiru" em vez de "massacre".
“Os soldados pegaram em armas para cumprir as ordens superiores. Eu atribuo a condenação deles nos cinco júris a uma estratégia do MP de responsabilizar quem estava na ação, sem nenhuma individualização de condutas, poupando quem ordenou a ação”, falou o advogado numa das ocasiões.
5 júris condenaram PMs
Entre 2013 e 2014, a Justiça paulista fez cinco júris populares e condenou, ao todo, 74 policiais militares pelos assassinatos de 77 detentos. A defesa dos PMs alegou que eles atiraram em legítima defesa depois de serem atacados por detentos com armas de fogo e facas que queriam fugir. Os outros 34 presos teriam sido mortos pelos próprios companheiros de cela.
Vinte e dois policiais ficaram feridos na ação, mas nenhum deles morreu. Para o Ministério Público os policiais executaram detentos que já estavam rendidos.
Dos agentes condenados, cinco morreram e atualmente 69 deles continuam vivos. Mais de 30 anos depois, ninguém foi preso. Os PMs foram punidos com penas que variam de 48 anos a 624 anos de prisão. Pela lei brasileira, ninguém pode ficar preso mais de 40 anos por um mesmo crime. Apesar disso, todos os agentes condenados respondem pelos crimes de homicídio em liberdade.
Decreto de Bolsonaro
O decreto inédito de Bolsonaro concede o perdão para crimes cometidos há 30 anos por agentes de segurança, desde que não fossem considerados hediondos naquela época. A lei que estabelece quais são os crimes hediondos é de 1990. Entretanto, o crime de homicídio só foi incluído nela quatro anos depois, em 1994.
Ou seja, os PMs condenados pelos assassinatos do Carandiru podem receber o indulto presidencial, uma vez que o massacre ocorreu em 1992.
Mas para quem participa do processo ou acompanha o caso do Carandiru, o indulto de Bolsonaro é inconstitucional. Isso por, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, o indulto presidencial não pode ser individualizado. E nesse caso, o entendimento deles, é de que o decreto não seguiu as regras da lei: já que foi criado para favorecer diretamente os condenados pelo Massacre do Carandiru.
O presidente também poderia, segundo eles, perdoar as penas de cada um dos PMs condenados, mas por outro dispositivo, chamado de "graça", que é individual. Ela foi concedida neste ano por Bolsonaro ao deputado Daniel Silveira (PTB), por exemplo.
Procurador
"Estou em contato com órgãos legitimados para a ADIN [Ação Direta de Inconstitucionalidade] para exatamente por um limite a esse absurdo", disse nesta sexta ao g1 o procurador Maurício Antonio Ribeiro Lopes, representante do Ministério Público (MP) na segunda instância da Justiça. "Não pode ser concedido a crimes hediondos e a Constituição assim os considera. Falta observância aos princípios da legalidade".
Ainda segundo o procurador, a decisão dos jurados que condenaram os PMs tem de ser respeitada. "Há contradições internas no texto do próprio decreto. A própria concessão da graça seria questionável na hipótese, quanto mais o indulto."
Promotor
"O artigo 6º do decreto [presidencial do indulto] é aplicável ao caso do Carandiru. E o decreto é direcionado a beneficiar os condenados pelo Carandiru", disse o promotor Márcio Friggi, que acusou os policiais militares pelos homicídios dos detentos e atuou nos julgamentos deles. "O MP vai estudar as medidas jurídicas cabíveis para estudar a decisão".
De acordo com Márcio, o decreto de Bolonaro é uma "declaração de extinção da punibilidade. Declara-se que está extinto o direito de punir do estado. Significa em outras palavras: Zero. É como se nada tivesse acontecido."
ONG
"Parece ser um indulto encomendado para beneficiar os PMs condenados pelo Massacre do Carandiru e também para contemplar os agentes das forças armadas que participaram das operações pela lei e pela ordem no Rio de Janeiro e em outros estados nos últimos anos e que cometeram crimes contra civis", disse o advogado Ariel de Castro Alves, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais.
"Um decreto para garantir a impunidade dos agentes policiais militares e das forças armadas. Um último ato do Bolsonaro em prol de seus apoiadores militares", falou Ariel.
Tribunal de Justiça
Procurado para comentar o assunto, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) informou, por meio de sua assessoria de imprensa, de maneira genérica, que os indultos presidenciais são anuais e abrangem presos que se encaixem nos fundamentos dos decretos. O TJ não respondeu pontualmente que medidas tomará sobre o decreto de Bolsonaro.
O Tribunal de Justiça não respondeu também se estará mantido para às 10h do dia 31 de janeiro de 2023 a retomada do julgamento que pode decretar as prisões dos policiais militares condenados pelo Massacre do Carandiru.
A 4ª Câmara Criminal do TJ-SP ficou de analisar o último recurso da defesa dos PMs que faltava ser julgado: o que trata das reduções das penas dos réus.
Supremo Tribunal Federal
Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF) as condenações dos PMs são definitivas porque sofreram "trânsito em julgado" na última instância da Justiça: não cabendo mais recursos da defesa para que elas possam ser anuladas e os agentes sejam absolvidos.
O que será julgado pelo TJ-SP será somente a dosimetria das penas e depois o cumprimento delas em alguma prisão. Apesar de a defesa ainda puder recorrer futuramente do tempo das penas nas instâncias superiores, os desembargadores podem determinar que sejam expedidos mandados de prisão contra os PMs.
O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, reconheceu, no último dia 17 de novembro, o trânsito em julgado de duas decisões que mantiveram a sentença do Superior Tribunal de Justiça sobre o Massacre do Carandiru. Em 2021, o STJ havia restabelecido as decisões dos julgamentos do caso que tinham condenado os policiais pelos homicídios dos presos.
Antes, em 2018, o Tribunal de Justiça de São Paulo tinha anulado todos os cinco julgamentos dos PMs no caso do Carandiru. Os desembargadores da 4ª Câmara Criminal do órgão alegaram que os jurados condenaram os agentes em desacordo com as provas do processo, determinando novos júris.
À época, Camilo Léllis e Edison Brandão haviam votado pela anulação dos júris do e determinaram que novos julgamentos fossem feitos. Ivan Sartori, outro desembargador, tinha sugerido a absolvição dos PMs, mas foi voto vencido. Ele se aposentou e foi substituído por Roberto Porto. Camilo e Edison continuam em seus cargos.
Anistia aos PMs
Além do decreto do indulto presidencial de Bolsonaro, em agosto, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou um projeto que anistia os policiais militares processados ou punidos pela atuação no Massacre do Carandiru.
O texto, do deputado Capitão Augusto (PL-SP), ainda será votado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa antes de seguir para o plenário.
O parlamentar argumentou que não há “respaldo constitucional para a condenação desses profissionais sem elementos individualizados que apontem a relação entre os fatos delituosos e a autoria”.
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Sobreviventes do massacre
“Ouvimos muitos disparos de metralhadoras, disparos e ações dos próprios policiais, pegando os estiletes dos egressos e matando a punhalada, a estiletada, os presos que estavam sob a tutela do Estado”, contou à reportagem Luiz Paulino, ex-detento e um dos sobreviventes do Massacre do Carandiru.
Coronel condenado, absolvido e morto
Em três décadas ocorreram seis julgamentos do Massacre do Carandiru. No primeiro deles, o tenente-coronel Ubiratan Guimarães, comandante das tropas da Polícia Militar que invadiu a Casa de Detenção, chegou a ser condenado pela Justiça, em 2001, a 632 anos de prisão pelos assassinatos de 102 presos.
Nenhuma autoridade da Secretaria da Segurança Pública (SSP) ou do governo paulista foi responsabilizada pelas mortes no Carandiru. Segundo o MP, a ordem para invadir partiu do coronel Ubiratan.
Em 2006, no entanto, Ubiratan se tornou deputado estadual pelo PTB e passou a ter foro privilegiado. Julgado naquele ano pelo Tribunal de Justiça em São Paulo, ele foi absolvido. Os magistrados consideraram que o então PM não participou da ação.
Ubiratan foi assassinado em 2006, dentro do seu apartamento. Uma namorada dele foi acusada de envolvimento no crime, mas foi absolvida pela Justiça.
Fonte - G 1
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